segunda-feira, 13 de junho de 2011

ARQUIVO VEJA: Os vivos e a as outras vidas



REVISTA VEJA, Edição 1904 . 11 de maio de 2005


É possível que a existência humana, tão complexa e rica, se dissolva quando o coração pára? Com uma resposta prática para essa questão crucial e a promessa de comunicação direta com os mortos, o espiritismo tornou-se a religião – ou, pelo menos, a segunda opção religiosa – de 40 milhões de brasileiros


Por Gabriela Carelli
O homem passa boa parte do tempo projetando o futuro. Descobrir o mundo, aprender novas lições, apaixonar-se, gerar e criar filhos, perseguir objetivos, aspirar à felicidade. Tudo isso compõe um ritual de celebração da vida e torna tão rica a aventura humana que uma reflexão crucial se impõe: é possível que a existência, tão complexa, se dissolva feito fumaça assim que o coração e o cérebro param de funcionar? Desde tempos imemoriais o homem se recusa a acreditar nessa fatalidade. Todas as religiões, sem exceção, enxergam na morte o início de outro tipo de existência, que começaria pela sobrevivência de uma parte da essência humana – chame-se a ela de alma, espírito ou qualquer outro nome. A crença na vida após a morte é universal. Os brasileiros, claro, não são exceção. Entre nós, talvez mais do que entre outros povos, não apenas se crê na eternidade da alma, mas se dá como certo que a reencarnação e a comunicação com os mortos são possíveis. Há nisso um sincretismo religioso tipicamente brasileiro. De acordo com o IBGE, 74% dos brasileiros declaram-se católicos, e a doutrina da Igreja Católica não concebe a comunicação direta entre mortos e vivos. Pelo menos não entre mortais comuns e mortos idem. A comunicação entre santos e mortais é admitida pela doutrina católica. Mas apenas quando ocorre um milagre. Coisa rara, como se sabe. Na prática, boa parte desse contingente católico também dirige sua fé ou sofre a influência de outro credo sem expressão no exterior e que só cresce no Brasil: o espiritismo. Segundo essa doutrina, codificada em 1857, na França, por Allan Kardec – pseudônimo do pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail –, a alma de todo ser humano morto reencarna tantas vezes quantas forem necessárias para que, devido às boas ações, ela se purifique. Quando atinge o patamar mais alto, torna-se um espírito puro, livre de imperfeições, e não mais retorna ao corpo físico. O espiritismo também crê que, com algum treino, qualquer pessoa pode se comunicar com os mortos. A questão é: para que fazer isso? Há várias respostas possíveis. A primeira é receber conselhos e orientação daqueles que já superaram os constrangimentos da existência corpórea. A segunda diz respeito à dor humana. Imagine uma mãe que chora a perda de um filho. Pode haver mais conforto que um contato espiritual, no qual ele lhe assegura que passa bem na vida póstuma?

No princípio era o medo. E o medo se fez crença. Para o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) essa seria a maneira mais simples de explicar o surgimento das religiões nas sociedades humanas. Por temor à fome, aos perigos e à morte, em determinada fase de sua evolução cultural, a humanidade apegou-se ao fervor religioso. Com ele veio a crença na vida eterna e no renascimento da alma e até do corpo físico em uma ou sucessivas existências. Veio também a idéia de que é possível a comunicação entre vivos e mortos. De uma maneira ou de outra, as convicções acima estão presentes em quase todas as religiões, mesmo nas que renegam essas facetas. Quando um católico reza para um santo de sua devoção ou quando, em caso de milagre, uma figura sagrada lhe aparece em carne e osso ou em forma éterea, está se dando uma espécie de comunicação entre vivos e mortos. Os budistas negam a existência de uma alma substantiva, mas acreditam na transmigração do carma – conjunto das ações dos homens e suas conseqüências – em algo que só pode ser definido como espírito.

Sigmund Freud (1856-1939), criador da psicanálise, tinha uma explicação para a prevalência na história das sociedades humanas da crença na transcendência do espírito. Ela não difere muito da de Weber. "Podemos dizer que, para a psicanálise, conceitos como reencarnação e comunicação com os mortos servem de consolo para a angústia que sentimos diante da finitude", explica a psicanalista freudiana Karin Wondracek, professora da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. De várias formas, os psicanalistas e os místicos estão atrás de respostas à mesma pergunta. O ser humano já foi definido como o único animal que sabe que vai morrer. É natural que a pergunta seguinte seja: o que vem depois?

Essa pergunta aparece nas obras mais ancestrais da cultura humana. Na cultura grega clássica era permitido às almas escolher novos seres para encarnar, fossem humanos ou animais. O ciclo de reencarnações e renascimentos é o núcleo do hinduísmo e do budismo, e estava na base da própria vida do Egito dos faraós. Não por acaso, eles eram sepultados com suas riquezas, para que pudessem desfrutá-las no outro mundo. Como os espíritas atuais, os egípcios acreditavam que só depois da morte a existência humana alcançava a plenitude. William Shakespeare reservou a um espírito um dos papéis principais de sua obra-prima, Hamlet. O pai do personagem-título, príncipe da Dinamarca, volta em forma de fantasma para lhe informar que fora morto pela mulher e seu amante, que lhe roubara o trono. O célebre diálogo dessa peça ("ser ou não ser") trata exatamente da angústia humana diante da impossibilidade de saber que sonhos trará o sono da morte.

Além de cultivar ainda hoje os ritos de origem africana, comuns a diversos países onde a escravidão foi a base da economia no passado, o país sobressai nas estatísticas mundiais como a pátria do espiritismo de inspiração kardecista – nome que deriva do francês Allan Kardec, estudioso positivista do fim do século XIX que produziu uma versão cientificista dos fenômenos religiosos focados na vida depois da morte. Segundo a Federação Espírita Brasileira, mais de 40 milhões de pessoas seguem a doutrina de Allan Kardec no Brasil. Apenas 2% dos brasileiros se dizem espíritas nos censos oficiais. A imensa maioria simplesmente acrescenta, sem drama de consciência, os ensinamentos de Kardec aos das religiões que professam oficialmente. Funcionam no país 10.000 centros espíritas. Eles eram apenas 3 000 no começo dos anos 90. Duzentas editoras publicam somente livros voltados para a comunidade espírita. Já foram vendidos 22 milhões de exemplares de sete livros escritos por Allan Kardec no Brasil.

A razão do sucesso é a mesma que alavanca esse tipo de crença em todo o mundo – e alavancou no passado: a rejeição da idéia de que o sofrimento, o som e a fúria sem significado da vida humana possam ser totalmente em vão. "O espiritismo conforta seus seguidores porque oferece explicações para todas as mazelas da vida e coloca o sofrimento como uma forma de purificação da alma", diz Antonio Flávio Pierucci, sociólogo especialista em religiões da Universidade de São Paulo. O espiritismo é mais direto, mas oferece um produto bastante similar ao das demais religiões. Todas prometem um mundo melhor além-túmulo, em geral em contato próximo com o esplendor do Divino. O que o espiritismo tem de próprio, ainda que não seja um monopólio seu, é o fato de acenar com a certeza de que, no futuro, haverá outras vidas, quantas forem necessárias, para tirar as manchas da alma. "A doutrina católica não ensina aos fiéis como lidar com a dor que os mortos deixam nos vivos nem explica as injustiças da vida. O sucesso do espiritismo deriva justamente dessa capacidade", diz o frei Luiz Carlos Susin, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

A crença maciça na reencarnação e na comunicação com os mortos não é uma extravagância brasileira. Uma pesquisa recente mostrou que 51% dos americanos acreditam em espíritos e 27% crêem em reencarnação. O que nos diferencia são a respeitabilidade alcançada por essas crenças na sociedade brasileira e as dimensões do espiritismo no país. O Brasil foi desde sempre um terreno fértil para crenças baseadas na comunicação com os espíritos e na reencarnação. Os escravos vindos da África entre os séculos XVI e XIX trouxeram crenças no contato direto com o mundo dos mortos, que floresceram e permearam todos os estratos da sociedade. Também os índios conversavam com seus mortos, cujo espírito, acreditavam, permanecia entre os membros da tribo por algum tempo. Nos Estados Unidos, os negros e os índios cultivavam práticas semelhantes, mas elas foram perseguidas até a extinção pelos protestantes – para eles, o conceito de encarnação era coisa do diabo, não de espíritos. Os primeiros brasileiros foram mais tolerantes com o mundo mágico dos escravos e dos índios, aproveitando-se das dificuldades encontradas pela Inquisição para impor o rigor católico na parte de baixo do Equador. Conclui Ceres Medina, antropóloga da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: "Quando as idéias de Allan Kardec chegaram ao Brasil, pelas mãos da elite que costumava estudar na França, foram assimiladas facilmente porque o brasileiro já convivia com as práticas espiritualistas".

O espiritismo desembarcou no Brasil no momento de crise política que antecedeu o advento da República. Naquele período, havia uma insatisfação com a cúpula da Igreja Católica, ligada ao conservadorismo político da monarquia. A doutrina de Allan Kardec era ao mesmo tempo uma filosofia de vida e uma lista de preceitos religiosos, e os brasileiros foram hábeis em transformar esse caldo em religião. "Os adeptos procuravam usar ao máximo os conceitos científicos em voga na época, principalmente o racionalismo e o evolucionismo, para justificar o espiritismo, o que dava aos cultos uma respeitabilidade que atraía a elite letrada", diz José Luiz dos Santos, chefe do departamento de antropologia da Universidade Estadual de Campinas. "Para divulgar a doutrina, a elite tratou de atrair pobres como clientes. Já no fim do século XIX eles procuravam os centros espíritas para resolver seus problemas de saúde", explica ele.

O espiritismo deslanchou de vez no Brasil pelas mãos do médium mineiro Chico Xavier (1910-2002), que se tornou uma celebridade nacional ao receber diariamente, em seu centro espírita, caravanas intermináveis de crentes em busca de curas e contatos com os mortos. De origem humilde e com instrução primária, o médium escreveu 400 livros atribuídos por ele a autores já mortos e que venderam mais de 30 milhões de cópias. Para os milhares de brasileiros que acorreram a ele, no entanto, Chico Xavier era quase um santo. "A grande contribuição de Xavier foi mostrar o lado da caridade que pontua a cartilha de Allan Kardec", diz Ceres Medina. "Ao propagar a prática da caridade, ele humanizou o espiritismo e acabou com o preconceito contra ele", completa. Em outros países, o espiritismo kardecista não teve tanta sorte. Em seu país de origem, a França, ele definhou. "Até hoje o espiritismo é confundido com bruxaria", disse a VEJA Charles Kempf, coordenador do Centro de Estudos Espíritas Léon Denis, da cidade francesa de Thann. Kempf tem uma explicação adicional para o êxito do espiritismo no Brasil. É uma explicação bem material. Se a prática da caridade e do assistencialismo chancelou o espiritismo no Brasil, na França isso não ocorreu. A razão? O assistencialismo do Estado francês funciona com razoável perfeição, não deixando espaço para os espíritas utilizarem esse recurso para angariar um rebanho maior.

"O espiritismo não consola,
explica as desgraças da vida"
Oscar Cabral

Todas as noites Lily Marinho, viúva do fundador das Organizações Globo, Roberto Marinho, segue um ritual: enche um copo de água e o coloca ao lado do retrato do marido, na cabeceira da cama. De manhã, joga fora a água. "Dizem que tudo de ruim fica concentrado ali", diz Lily, que é católica, mas desde que o filho Horácio morreu, em 1966, encontrou conforto no espiritismo. Leu Allan Kardec, foi a centros espíritas, visitou Chico Xavier e chegou a ter uma visão. "Eu estava em Paris quando vi Horácio, vestido de branco, segurando uma criança. Entendi que era um recado dele para eu adotar um menino", conta. Sete meses depois da morte do filho ela adotou um garoto, João Baptista. Lily afirma ter encarado a morte de Roberto de forma mais tranqüila e que sente a presença dele pela casa. Aos 84 anos, ela não tem o hábito de ir à missa (apesar de ter providenciado celebrações em memória do filho numa igreja de Milão), garante que não teme a morte e acredita em reencarnação. Diz Lily: "O espiritismo não é um consolo. É uma explicação para as desgraças da vida".
"Uma carta psicografada mudou minha vida"
Roberto Setton

Ex-jogadora da Seleção Brasileira de Basquete, Maria Paula Gonçalves da Silva, a Magic Paula, de 43 anos, é espírita desde 1992. Conheceu a doutrina em 1983, quando se submeteu a uma cirurgia espiritual, que sanou uma lesão grave que tinha no joelho. Em 1999, passou por uma experiência marcante. Durante uma sessão de massagem, a profissional que a atendia passou mal e saiu da sala. "Quando ela voltou tinha nas mãos uma carta psicografada com uma mensagem do meu pai", diz Paula. "Eu me senti culpada quando ele morreu. A carta era sobre essa culpa. Mudou minha vida."
Hollywood e o cenário do além
Uma série de sucessos de bilheteria cujo tema é a comunicação entre vivos e mortos reflete o interesse despertado pelo tema, sobretudo o existente nos Estados Unidos, onde os filmes são produzidos. As pesquisas mostram que mais de 50% dos americanos acreditam em espíritos, 27% deles, em reencarnação, e nove em dez estão certos de que a alma sobrevive à morte. À esquerda, Nicole Kidman em Os Outros, e, à direita, Bruce Willis em O Sexto Sentido, ambos filmes sobre fantasmas.


Com reportagem de Tiago Cordeiro e Thereza Venturoli

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