sexta-feira, 20 de maio de 2011

ARQUIVO VEJA: Criado na França, o espiritismo só deu certo no Brasil

REVISTA VEJA, Edição 1659, 26/7/2000

À nossa moda

Criado na França, o espiritismo deu certo
apenas no Brasil, onde a doutrina mística com
pretensões científicas é culto da classe média


Flávia Varella

Mário Covas, governador do mais rico e populoso Estado do Brasil, é católico, mas busca aconselhamento com os espíritos quando está com problemas pessoais. O general Alberto Cardoso, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, homem poderoso na equipe do presidente da República, criou o hábito de incorporar espíritos e orientar com voz do além os desesperançados que o procuram. Herbert Steinberg, professor de pós-graduação e dono de uma importante consultoria de empresas, nasceu judeu, virou católico e agora reúne a família pelo menos uma vez por semana para ler e discutir a Bíblia sob a ótica do espiritismo. O médico Ronaldo Gazolla, secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro há nove anos, controla dezesseis hospitais, 110 postos de saúde e 30 000 funcionários, mas não deixa de ir toda quarta-feira ao centro espírita que preside, onde ergue as mãos e canaliza energias positivas, num chamado passe, que acredita contribuir para a cura de enfermos da alma e do corpo.
O segundo ministro da Saúde do governo de Fernando Henrique Cardoso, o cardiologista gaúcho Carlos César de Albuquerque, vê e recebe espíritos. O autor das telenovelas de maior sucesso do país, Benedito Ruy Barbosa, diz que seu pai o acompanha e orienta desde que morreu, quando ele tinha 12 anos, e, por isso, sempre dá um jeito de promover um reencontro de personagens mortos em seus enredos televisivos. Tande, campeão olímpico, estava convicto de que integraria a seleção brasileira muito antes de começar a jogar vôlei, por causa da mensagem recebida por seu pai, um militar médium vidente. A dona do rebolado mais admirado do país, Scheila Carvalho, acredita que foi princesa em outra encarnação e tem o livro O Evangelho Segundo o Espiritismo  em sua cabeceira. O escritor brasileiro que mais vende livros  cerca de 30 milhões de exemplares , Chico Xavier, não escreve seus textos, psicografa.



Herbert Steinberg
Consultor e professor, nasceu judeu, virou católico e agora é espírita, como toda a família: "A doutrina é lógica e convence"

Está aí um retrato possível da elite brasileira. Um retrato da elite, por sinal, possível apenas no Brasil. Primeiro, porque em nenhum lugar do mundo há tantos espíritas, a ponto de se poder fazer uma lista deles olhando apenas para o pódio dos bem-sucedidos, famosos e poderosos. Segundo, porque só aqui católicos, judeus ou protestantes atestam a comunicação com os mortos e a reencarnação sem se ruborizar e sem medo de ser expulsos de sua igreja, sinagoga ou templo. De acordo com a Federação Espírita Brasileira, são 8 milhões de adeptos e 30 milhões de simpatizantes. Pesquisas de opinião pública indicam um número menor: 3% da população, ou 4,8 milhões de pessoas. Mas essas são apenas as que se declaram espíritas ao pé da letra. Não estão incluídos aí todos os freqüentadores de centros, muito menos o total de simpatizantes.
Num país onde até o presidente da República, declaradamente ateu, gosta de se descrever como um intelectual com pitadas de candomblé, é evidente o apelo das religiões mediúnicas, mesmo quando há um choque doutrinário com os cultos dominantes. Uma enquete feita pela Vox Populi há quatro anos revelou que 59% dos brasileiros acreditam na existência de espíritos  conceito aceito apenas pelo kardecismo e pelas religiões afro-brasileiras, como umbanda e candomblé. Na França, onde o espiritismo nasceu, pelas mãos do pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail, vulgo Allan Kardec, a única associação de seus seguidores conta com pouco mais de 150 sócios. "Aqui, como em toda a Europa, o espiritismo é desconhecido. Não é considerado uma coisa séria", admite Jacques Peccatte, presidente do Círculo Allan Kardec, instalado na cidade de Nancy. "A doutrina kardecista só é desenvolvida de fato no Brasil."
Desenvolvida e adaptada às condições locais por Chico Xavier, que tropicalizou os princípios doutrinários difundidos pelo francês no século XIX, dando-lhes um apelo mais sentimental, humano, bem adaptado à alma nacional (veja quadro). Aqui, o espiritismo não apenas se estabeleceu como passou a fazer parte da cultura brasileira. Sem o estardalhaço nem os números explosivos das igrejas evangélicas, o espiritismo está sempre ampliando o contingente de adeptos, com uma característica peculiar: ele se difunde principalmente nas classes sociais mais altas. Cinco anos atrás, havia 5.500 centros espíritas espalhados pelo país (concentrados nas regiões Sul e Sudeste). Hoje, são mais de 9.000. Nas salas de aula da Federação Espírita de São Paulo, 11.300 alunos sentam-se para aprender desde os fundamentos do kardecismo até como ser médium ou como se tornar um expositor da doutrina. Há dez anos, eram menos de 6.000.


Benedito Ruy Barbosa
Desde que sua mãe viu o marido, que tinha morrido, sentado a seu lado, o autor tornou-se espírita e passou a sentir a presença do pai

Outro termômetro da expansão recente do espiritismo é a publicação de livros relacionados com o assunto. A leitura é o mais importante recurso de evangelização espírita. O motivo está na própria natureza dessa religião, cujos princípios, de acordo com os crentes, foram transmitidos por meio de inúmeras "comunicações" do além, transcritas pelos médiuns. "Aprende-se o espiritismo lendo", afirma o presidente da federação paulista, Durval Ciamponi, autor de cinco livros - encontrar um expoente do espiritismo que não tenha escrito livros é tão difícil quanto achar um pastor evangélico que não cante. Pois há cada vez mais gente interessada na literatura kardecista, uma barreira natural na seleção de classe. "O espiritismo é uma religião letrada", afirma o sociólogo Lísias Nogueira Negrão, presidente do Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro. "Mais do que uma religião, o espiritismo se pretende uma ciência, uma filosofia. Por isso, e por ter alta capacidade de persuasão pela lógica, atinge as classes sociais mais instruídas." Um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas mostra que os espíritas pertencem, primordialmente, às classes média e alta. Sua renda familiar é 150% maior que a média nacional (só perde, entre as religiões, para o judaísmo) e a escolaridade de seus adeptos também é a segunda no ranking  em média, dez anos de estudos completos. Essa é uma característica da doutrina, desde sua chegada ao Brasil, na segunda metade do século XIX, com a circulação de livros em grupos restritos da elite nacional. Saber ler e ter condições de comprar livros era privilégio mais exclusivo ainda do que hoje.
Meritocracia espiritual – Os primeiros advogados, militares, jornalistas, médicos convencidos pelos preceitos de Kardec ainda no século XIX criaram uma tradição. A Cruzada dos Militares Espíritas, fundada em 1944, tem hoje 5.000 participantes, entre eles generais e coronéis. "O número de militares espíritas saltou nos últimos seis anos, e as adesões não param", diz o coronel Ruy Kremer, presidente da entidade, que orienta a ação de 432 delegados organizadores de grupos de estudos em quartéis, navios ou em qualquer ponto em que haja um militar a serviço. Há associações de médicos espíritas em 21 Estados. "Com o espiritismo, aprendi a reconhecer minha capacidade intuitiva, que me auxilia nos diagnósticos, e descobri que tenho o dom da cura pelas mãos", afirma o oncologista mineiro Renato Nogueira, espírita há três anos.
A doutrina é ancorada na crença da reencarnação e da comunicação com "entidades espirituais desencarnadas", ou seja, pessoas que já morreram. Os adeptos acreditam que os espíritos dos mortos voltam à Terra e se encarnam em novos seres humanos, no nascimento. Por trás disso está a idéia oriental do carma: volta-se à vida terrena para pagar pelos erros cometidos em encarnações anteriores, num processo contínuo, até zerar tudo, atingindo-se um estado de plena perfeição moral. Com base nessas crenças, a doutrina oferece explicações para as eternas dúvidas humanas: de onde viemos, para onde vamos, qual o sentido da vida, por que somos atormentados por tantos padecimentos. A busca de respostas chega a níveis radicais. No Livro dos Espíritos, que Allan Kardec dizia ter escrito depois de ouvir inúmeras entidades, há mais de 1.000 perguntas e respostas. Daí a aura de ciência que o espiritismo sempre reivindicou.

"O espiritismo nasceu com uma linguagem adequada à ciência da época. As idéias eram bem sistematizadas e aplicavam à trajetória pessoal de cada um o evolucionismo, muito em voga", explica José Luiz dos Santos, antropólogo da Universidade de Campinas e autor do livro Espiritismo, uma Religião Brasileira. Ainda hoje a teoria funciona. O fato de estarmos na Terra para melhorar, ou seja, evoluir espiritualmente, e zerar a contabilidade de erros de encarnações passadas explica ter ou não dinheiro, sofrer ou ser feliz, morrer jovem ou com idade avançada. A fórmula para evoluir também é simples: fazer o bem. Assim, ajudar em obras assistenciais e ser caridoso são atividades imprescindíveis para um espírita.
"Foi só no kardecismo que encontrei as respostas que procurava. A teoria toda faz sentido e me convence", afirma Herbert Steinberg, empresário e professor de gerenciamento estratégico em um curso de MBA. Antes de ler os primeiros livros com mensagens de Chico Xavier, Steinberg se desiludira com sua religião de família, o judaísmo, e com o catolicismo, ao qual se converteu num rompante juvenil. "Não preciso de mais provas: o astral das pessoas e a sincronicidade de alguns acontecimentos já são pistas suficientes para mim de que existe algo além da vida que enxergamos."

"Nova era" – O espiritismo oferece muitos esclarecimentos, tem poucos dogmas e nenhuma hierarquia. Na prática, demonstra uma flexibilidade que vem ajudando em sua propagação. A moda do esoterismo e da curiosidade pelo sobrenatural, englobada sob a denominação genérica de fenômenos da "nova era", é capitalizada com entusiasmo. Os americanos Brian Weiss, autor de Muitas Vidas, Muitos Mestres (quase 2 milhões de exemplares vendidos), e James van Praagh, autor de Conversando com os Espíritos (1,5 milhão de exemplares), por exemplo, são recebidos como sumidades. Dão palestras em auditórios, centros de convenções e centros espíritas. Embora não sejam kardecistas, são citados como prova da veracidade e da universalidade da doutrina. O mesmo aconteceu com filmes como Ghost e O Sexto Sentido, com o famoso menino que vê "gente morta"  ou espíritos desencarnados. "Um dos segredos do crescimento do espiritismo é a incorporação de tudo o que diga respeito a espíritos. Seus praticantes pegam temas em voga, como terapia de vidas passadas ou fotografia da aura, e os analisam sob a visão do kardecismo. Com isso, vão ganhando adeptos entre aqueles que gostam de estar na moda", afirma o antropólogo José Luiz dos Santos.
Embora professe fenômenos fantásticos, como a possibilidade de viajar para outros mundos e falar com mortos, quem procura o kardecismo em busca de emoções arrepiantes sai decepcionado. Uma sessão espírita é como um "workshop". Em geral, começa com uma palestra sobre um tema evangélico, evolui para uma discussão amigável e termina com um "passe". O passe é uma transmissão de energia que, crêem os adeptos, ajuda a resolver problemas físicos, psicológicos e espirituais. Não é preciso incorporar espíritos para dar o passe, embora a energia venha deles. Não há, portanto, cenas empolgantes, nem ao menos muito curiosas, numa sessão comum, daquelas que as pessoas freqüentam semanalmente.
As sessões de cura espiritual ou de desobsessão, mais instigantes, quase sempre são feitas em salas isoladas. A desobsessão serve para afastar espíritos incômodos. Um médium incorpora um espírito que tenta convencer o "espírito errante" a abandonar sua vítima. Para a cura, além dos passes, existem as cirurgias espirituais, propaladamente feitas por espíritos de grandes médicos mortos. Mas depois de escândalos como o de Rubens Faria Júnior, o mais recente incorporador do famoso doutor Fritz e acusado de charlatanismo, as cirurgias em que o corpo do paciente é aberto praticamente sumiram. Restaram apenas as curas por energia. Vários centros agora oferecem também sessões de cromoterapia, modismo esotérico incorporado sem preconceito pelos kardecistas. Adaptar-se aos tempos, afinal, é um preceito doutrinário do espiritismo.



Ronaldo Gazolla
Médico e secretário de Saúde do Rio, ele recebe mensagens de espíritos: há trinta anos era materialista convicto; hoje, preside um centro
General Cardoso
O ministro e médium faz parte de uma tradição nas Forças Armadas: a Cruzada dos Militares Espíritas foi fundada em 1944 e hoje abriga 5 000 adeptos

Tande
O campeão olímpico de vôlei segue a religião desde criança: mensagem recebida pelo pai, militar e médium, já antecipava o futuro como esportista
Carlos Albuquerque
O ex-ministro da Saúde de FHC procurou ajuda para controlar a mediunidade: "Eu via os espíritos com meus pacientes"


O mundo, daqui e do além,
segundo o espiritismo

Para onde vamos
No livro Nosso Lar, psicografado por Chico Xavier, é descrita a colônia espiritual para onde vão os espíritos dos brasileiros que morrem. Tem formato de estrela, localiza-se no céu, mais ou menos sobre o Estado do Rio de Janeiro, e tem hospitais, escolas, governo com ministérios e muita burocracia. Lá os espíritos passam por um processo evolutivo e aguardam até reencarnar mais uma vez.
Sofrimento
A dor, o sofrimento e as mazelas humanas são conseqüência de maldades cometidas em outras vidas. Nada fica impune. Quem morre sem reparar os erros praticados carrega a pendência para a próxima encarnação, na qual vai sofrer. Nessa perspectiva, não há injustiça.
Jesus Cristo
É o espírito mais evoluído que já viveu na Terra. Foi concebido fisicamente por José e Maria para difundir ensinamentos espirituais. O que os católicos chamam de milagres são fenômenos físicos, naturais aos espíritos evoluídos.
Comunicação com o além
A forma mais conhecida é a psicografia. Os espíritos ditam mensagens aos médiuns, que as escrevem automaticamente. Alguns dizem que apenas o braço é tomado; outros, que vêem legendas passando pela cabeça.
Viagem astral
Pessoas sensitivas podem transportar-se para outros lugares sem levar o corpo consigo. Podem visitar lugares no espaço onde vivem os espíritos ou viajar milhares de quilômetros na Terra mesmo para, por exemplo, impedir que alguém se suicide.
Extraterrestres
A existência de vida em outros planetas faz parte da doutrina transmitida por Allan Kardec. Pode haver planetas habitados por seres encarnados em corpos, como na Terra, e também mundos em que vivem espíritos desencarnados.
Homossexualismo
Um espírito que não sabe viver dentro do sexo em que encarnou terá de reencarnar tantas vezes quanto necessárias para aprender. Segundo o presidente da Federação Espírita de São Paulo, Durval Ciamponi: "É uma distorção comportamental de alguém que teve muitas vidas passadas num determinado sexo e tem dificuldade em se adaptar a um corpo de outro sexo. Tem de corrigir".

Mistura entre os extremos

Em 1848, as irmãs Margaret e Kate Fox começaram a ouvir pancadas e ruídos vindos do chão e das paredes de sua casa em Hydesville, no Estado de Nova York. Intrigadas, estabeleceram um código com base no número de batidas e receberam a informação de que quem produzia os barulhos era o espírito de um homem assassinado e enterrado debaixo da casa. O caso virou tema de debates e investigações infindáveis. As irmãs Fox percorreram vários países mostrando seu aparente poder de comunicação com os espíritos. Na mesma época, na Europa, o fenômeno das mesas girantes virou uma diversão da burguesia. Ao colocar as mãos sobre a mesa, ela se mexia. Devido à manifestação de espíritos, supunhase. Depois, desenvolveu-se um método, com as letras do alfabeto, para receber "respostas" das tais entidades.
Os cultos esotéricos pululavam num ambiente contraditório. O cientificismo era o pano de fundo do pensamento da época. O evolucionismo e o positivismo afloravam. Ao mesmo tempo, a paixão pelo sobrenatural se propagava. Das colônias orientais da França e Inglaterra chegavam conceitos como corpo astral, energia vital, reencarnação e carma. Em 1875, a russa Helena Blavatsky fundou em Nova York a Sociedade Teosófica, que misturava elementos do ocultismo com tradições indianas. O pedagogo francês Hippolyte Rivail  Allan Kardec, acreditava ele, era o nome que teve em outra encarnação, como druida ou sacerdote celta  tentou unir os dois extremos: deu uma roupagem científica a esse furor esotérico e criou o espiritismo, em 1857.
Na França, a doutrina feneceu. No Brasil, onde o catolicismo dava destaque ao inexplicável e as culturas indígena e africana abriam caminho às manifestações de espíritos, o kardecismo vicejou. "Aqui se valorizou o lado religioso de moralização, com ênfase na caridade e no serviço dos passes ditos terapêuticos", explica o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, da USP. Ajudaram a difundir o espiritismo médiuns famosos, como José Arigó, que realizava cirurgias sob orientação do espírito do doutor Fritz, e principalmente Chico Xavier. Hoje um discípulo seu, Divaldo Pereira Franco, é o líder mais popular. E justamente na Bahia dos orixás. Já psicografou 500 espíritos e publicou 125 livros.
Anos depois de causar furor as irmãs Fox se desmentiram. Disseram que os espíritos eram invenção delas. No Brasil, ninguém ligou.

Com reportagem de Eduardo Nunomura, de São Paulo, Marcelo Carneiro,
do Rio de Janeiro, Leonardo Coutinho, de Belo Horizonte, Monica Bidese,
de Porto Alegre, e Daniella Camargos, de Salvador

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