quarta-feira, 25 de maio de 2011

ARQUIVO REVISTA ÉPOCA: A FAMÍLIA GASPARETTO PARTE 2

Obras psicografadas são mais antigas que Allan Kardec, o fundador da doutrina. Mas, no Brasil, os Gasparettos inovam com um marketing espírita que inclui lançamentos de livros, CDs e fitas cassete, programas de rádio e TV, palestras e cursos. A matriarca fez uma opção clara pelo mercado a partir de 1995, quando se afastou da militância religiosa. Deixou o comando do centro espírita Os Caminheiros, que desenvolvia obras sociais na periferia de São Paulo e atendia mais de 1.000 pessoas por dia, para dedicar-se a uma editora própria, a Vida & Consciência, que se tornou uma das maiores do ramo no país. Só com a venda dos livros pode faturar R$ 17 milhões por ano, sem contar a gráfica, que presta serviço a editoras, como Siciliano e Saraiva.

Nada demais para quem vive num mundo capitalista, no qual acumular fortuna não é um sacrilégio, mas um dom. Para o espiritismo puro, porém, usar os 'seres de luz' com objetivo pecuniário equivale a usar um morto para ser muito vivo. Teoricamente, o escritor espírita é apenas um instrumento entre quem foi e quem fica, sem mérito nem pelo estilo nem pelo conteúdo da obra. Por isso, dizem os espíritas, ganhar dinheiro com esse tipo de livro é moralmente questionável. Chico Xavier nunca embolsou um tostão e o baiano Divaldo Pereira Franco doa o que ganha a instituições de caridade, vivendo da aposentadoria de R$ 980 como funcionário público. 'Espíritas têm de trabalhar com o suor do rosto para viver', defende Franco. 'Os bons espíritos mandam mensagens e não cobram nada. Se nos beneficiarmos desse dom, estaremos cometendo um crime.'
''Os espíritos me aconselharam a dedicar-me à divulgação das idéias. Eles me mandaram abrir uma gráfica e deixar outras pessoas assumirem as obras sociais''
ZIBIA GASPARETTO, justificando o abandono do centro espírita para se dedicar aos negócios
Para escapar das críticas sem perder os adeptos de sua linguagem simples, com tramas de suspense, Zibia define-se hoje como 'espírita independente'. Transferiu a responsabilidade da opção pela livre iniciativa para os mortos. 'Os espíritos me aconselharam a dedicar-me à divulgação das idéias', justifica. 'Eles me diziam: 'Você precisa abrir uma gráfica'.' Pelo jeito, Adam Smith, Henry Ford e John Pierpoint Morgan devem ser algumas dessas almas inquietas, pois a estratégia deu certo. Zibia conquistou as grandes livrarias e as listas dos mais vendidos. Derrubou as muralhas da doutrina e abriu um filão no mercado que não pára de crescer. Na última Bienal do Livro em São Paulo, em 2002, por exemplo, uma pesquisa do Sindicato Nacional dos Editores mostrou que, entre 1.700 visitantes, os livros espíritas ficaram em segundo lugar como área de interesse. Só perderam para a categoria romance.
Zibia, enfim, captou bem as vibrações do mercado ao investir numa espécie de romance do Além. Perdeu fãs mais rigorosos, como a bancária Maria Bacchiega, que se tornou espírita depois de ler uma de suas obras antigas. 'Entrei na doutrina porque achava os livros dela muito bonitos, mas depois ela fugiu dessa linha e parei de comprá-los', critica. As baixas, no entanto, são compensadas pelo número crescente de novos leitores que, sem crença definida, buscam na possibilidade da vida depois da morte não um preceito filosófico, mas um alento para as dores deste mundo. 'Ela hoje pega mais leve nas causas espíritas que os outros autores, tem um estilo mais romanceado. Não sou espírita e gostei de seu lançamento mais recente, Tudo Tem Seu Preço', diz a webmaster Vera Moraes.
O filho Luiz foi o guia espiritual da família Gasparetto na transição da caridade para o business. Foi por influência dele que a família tratou de trocar a ortodoxia da doutrina pela individualidade da auto-ajuda - e chamou isso de 'metafísica'. Ele também deixou de falar em mediunidade. Prefere 'sexto sentido'. No passado, Luiz já emprestou as cordas vocais ao impressionista francês Toulouse-Lautrec para que desse uma entrevista na TV Cultura. Mas hoje ele dá pouca atenção a espíritos de mestres como Leonardo da Vinci porque está dividido entre atividades mais rentáveis: cursos para platéias que chegam a mais de 3 mil pessoas e um programa na Rádio Mundial, em São Paulo. Contratado pela diretora Miriam Morato, é o apresentador mais importante da emissora. Em breve estreará na TV CBS, em UHF, e na NET. 'Se eu tenho dom, por que não vou ganhar dinheiro com isso?', desafia. 'O espiritismo é estruturado em cima do assistencialismo, que é um veneno. Achavam Chico Xavier lindo porque se sacrificava. Podem me odiar, mas ninguém vai se aproveitar de mim. Hoje não tenho religião.'
''O espiritismo é estruturado em cima do assistencialismo, que é um veneno. Achavam Chico Xavier lindo porque se sacrificava. Podem me odiar, mas ninguém vai se aproveitar de mim. Hoje não tenho religião''
LUIZ GASPARETTO
Luiz chega a ganhar R$ 40 mil em um único dia de curso e sonha em ser um pop star da auto-ajuda. Compra suas roupas em Los Angeles, onde mantém uma casa, gosta de novidades gastronômicas, só anda com motorista e aposta na imagem de self made-man. Está longe de ter a fama da mãe, mas tem se esforçado para ser seu herdeiro. Fiel aos preceitos divulgados em seus livros e cursos - 'O que conta é a idéia que a pessoa faz dela própria' -, difunde um excelente conceito de si mesmo. 'Sou a pessoa mais interessante que conheço', garante.
Longe das críticas, a família Gasparetto vive em alegre turbulência. Além dos cinco membros de carne e osso, há os respectivos espíritos que freqüentam o corpo de cada um. Curiosamente, eles respeitam o horário comercial para fazer contato, como convém a seres de luz evoluídos. Lucius, por exemplo, que ditou 18 dos 24 livros de dona Zibia, visita sua anfitriã de segunda a quinta-feira e foi um membro do parlamento inglês - uma das poucas revelações que deixou escapar sobre suas muitas encarnações. Trata-se de um espírito de temperamento reservado, que não gosta de falar do passado. Zibia, mulher de educação antiga, filha de um cafeicultor da região de Campinas que quebrou na crise de 1929, prefere não se meter na vida - opa! - do amigo celestial. 'É feio ficar perguntando, não gosto de constrangê-los.'
NEGÓCIOS
Pedro (à esq.) e Irineu (meio) administram um curtume em Mogi das Cruzes e a Fundação Aldo Gasparetto, que profissionaliza 25 jovens carentes. Pedro vê e ouve os espíritos. Irineu 'recebe' letras e melodias de grandes nomes do além-samba. Em nome deles, gravou seleções em CD (à dir.)
Luiz tem como visitante mais assíduo de seu corpo esculpido por horas de balé e biodança um caboclo mineiro chamado Calunga. Sem dentes, descalço e vestido de linho bege, ele é 'um fantasma meigo e violentamente sábio'. Em meio à série Calunga, composta de dez fitas cassete com orientações espirituais, estão títulos como Tá Tudo Bão eSentado no Bem. Calunga incorpora em Luiz durante os programas de rádio e apresenta aos ouvintes 'as mais belas e elevadas verdades da vida'. A maior das revelações 'na perspectiva dos desencarnados' é: 'O importante é ter paz no coração'.
''Os bons espíritos não cobram nada e são eles os autores. Se nós nos beneficiarmos, estaremos cometendo um crime''
DIVALDO PEREIRA FRANCO,apontado como o sucessor de Chico Xavier e já vendeu 7,5 milhões de livros. Vive de sua aposentadoria
Irineu, o músico, é mais tímido. A família descobriu que ele era intérprete mediúnico dos mestres falecidos em uma festa. De repente, ele mudou de fisionomia e murmurou canções. Logo fazia shows incorporando estrelas do além-samba. 'E eu nem curtia música brasileira. Gostava era de Beatles e Elvis', diz. Os gringos até apareceram para ditar alguns versos. Mas não deu muito certo. 'Meu inglês é muito ruim', desculpa-se o médium. Nessas ocasiões, ele recebe a ajuda do irmão, poliglota. Numa delas, apareceu John Lennon. 'Levei um susto, o cara estava em meu quarto', conta Luiz. Dia desses apareceu Dolores Duran, a musa que, aos 29 anos, chegou em casa ao amanhecer e disse à empregada: 'Estou cansada. Vou dormir até morrer'. Mulher de palavra, teria restado à cantora mandar suas composições por Irineu. O médium anotou os versos e mostrou ao irmão. 'Se essa é Dolores, piorou muito', disse Luiz, em um dos raros momentos de crítica às almas.
Até 1950, a família era tradicional, pacata mesmo. Aldo Gasparetto, um ex-seminarista, era representante comercial. Zibia, que trabalhou num banco até se casar, era católica distraída. A vida de classe média transcorria sem sobressaltos, dois filhos crescendo com saúde, quando Zibia saltou da cama e saiu andando num passo de homem, discursando em alemão. O marido demonstrou possuir nervos titânicos. Nem correu. Apenas chamou a vizinha, espírita. Depois de uma oração, Zibia voltou ao normal. 'Aldo ficou preocupado porque eu não era dada a chiliques', conta. 'Aparentemente era uma pessoa normal, equilibrada.' Em busca de respostas, os Gasparettos mergulharam na doutrina espírita. Zibia estudou até a 4a série, mas lia desde os 5 anos. Fã de Agatha Christie, escrevia contos policiais. Acabou dedicando-se a outros mistérios pelas mãos de Lucius, que se revelou um espectro fiel, mas lento. Levou cinco anos para ditar o primeiro livro, O Amor Venceu. Hoje, com as novas necessidades do mercado editorial, aumentou a produtividade para cerca de um romance por ano. Aldo Gasparetto morreu do coração, em 1980. Os filhos dizem que aparece para dar palpites sobre a administração dos bens. Como nos romances de Zibia, a morte não é barreira para o amor. Nem para os negócios.
COLABORARAM TIAGO CORDEIRO E ROSÂNGELA BAÍA

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