quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

A respeito da médica que se diz espírita e se recusou a atender uma menina de 7 anos que foi violentada pelo tio


Médica sugeriu que vítima foi violentada por problema em "vidas passadas"


Por Vanessa Quadros, SEEB

O CASO: "Uma médica ginecologista foi condenada por danos morais pela Justiça de Mato Grosso por ter dito à mãe de uma menina vítima de estupro que o crime foi cometido por culpa da criança. Segundo o processo, a médica afirmou que a vítima tinha "uma energia sexual que puxou o tio para ter sexo com ela" e que não atenderia a criança, atualmente com sete anos de idade, porque não queria se envolver naquele "problema espiritual".
O caso aconteceu em Rondonópolis, a 218 km de Cuiabá. O processo está sob sigilo e não foi divulgada a data dos fatos. Conforme a decisão, que é da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça (TJMT), a médica terá que pagar indenização de R$ 10 mil à mãe da menina.
Conforme informações do TJMT, a mãe da criança procurou a médica para uma consulta porque a filha estava com sequelas provocadas pelo estupro sofrido pelo tio um ano antes. Porém, por telefone, a ginecologista disse à mulher que não queria fazer o atendimento e que o crime teria sido cometido por culpa da menina. A conversa foi gravada.

“A sua filha não é vítima de nada, ela tem que se responsabilizar”, disse a médica à mãe, segundo consta do processo. Por telefone, a ginecologista disse que era espírita, que a menina havia tido "outras vidas" e que, na vida atual, nasceu "com esse problema para resolver" e que por essa razão "ninguém é vítima de nada". "Se o cara [o agressor sexual] tem uma energia sexual, se liga a uma criança, ela [a criança] vai e pratica". Assim, na avaliação da médica, a menina tem responsabilidade pelo crime, “já [que] nasceu com um problemão para resolver nesta vida”. (Fonte: G1)

Em pleno século XXI, é impressionante que o Espiritismo ainda é utilizado de forma a justificar preconceitos sociais e más condutas de profissionais que deveriam ser exemplos para sociedade de cuidado, amor e benevolência. Uma doutrina que tem como base os ensinamentos de Jesus; que incentiva a igualdade de gênero e a idéia de humildade; uma doutrina que incentiva a idéia de que somos todos espíritos em aprendizado; onde deixa bem claro que não podemos nos colocar como ditadores da moral alheia; que coloca bem claramente que nós não temos como saber as vidas passadas das criaturas, nem as nossas, salvo exceções, e a moral de ninguém, ainda é erroneamente colocada como um pseudo-catolicismo punitivo, que utiliza da idéia do "olho por olho, dente por dente", incentivando que a vingança e as provações provocadas ao espírito encarnado são completamente providenciais e justas pela conduta obtida em vidas passadas, como se isso justificasse de alguma forma as dores dessas almas.

Existe uma enorme diferença entre a justiça de Deus (leia-se de Deus, e não da humanidade), que é baseada no livre-arbítrio de cada um e nas Leis de Deus que estão em nossa consciência, e a visualização e identificação de condutas que ferem o livre-arbítrio do ser para o ser, como o estupro e o assassinato, que, além de condutas que vão de encontro as leis humanas e dos direitos humanos, são contrárias às leis morais descritas no Livro dos Espíritos. 

Mas, o que é livre-arbítrio? O que são leis de Deus e leis morais? Onde se aplicam, e como podemos relacionar essa notícia com o Espiritismo e o que a doutrina realmente diz? 

Vamos mostrar um pouco de como o verdadeiro Espiritismo se aplicaria nessa história, e tentar mostrar o que é que a doutrina Kardecista realmente diz, e não o que pessoas que desconhecem da codificação acham que ela diz. 

LEI DE CONSERVAÇÃO:
719. O homem deve ser censurado por procurar o bem-estar? 
O bem estar é um desejo natural. Deus só proíbe o abuso, por ser contrário à conservação. Ele não condena a procura pelo bem-estar, desde que não seja conseguido à custa de outras pessoas, nem venha diminuir as vossas forças físicas e morais. (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos)

Como se aplica na história: uma garota de 7 anos foi estuprada (leia-se estuprada; ou seja, teve sua liberdade censurada por alguém, foi violada, violentada) e estava sofrendo de sequelas do acontecimento. Seria errado ela procurar alívio de suas dores físicas? (Não entramos nem no mérito de merecimento, visto que, qualquer pessoa que acredite na Lei de Amor e que tenha o mínimo de empatia, vai compreender do que estamos falando nesse momento)

720. As privações voluntárias, que visam a uma expiação igualmente voluntária, têm algum mérito aos olhos de Deus?
Fazei o bem aos outros e mais mérito tereis. (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos)

Como se aplica na história: uma médica que se diz espírita, está fazendo o bem ao privar o alívio do bem-estar de uma jovem que está em sofrimento? 

754. A crueldade não resulta da ausência de senso moral?
Dizei que o senso moral não está desenvolvido, mas não digais que esteja ausente, porque ele existe, em principio, em todos os homens. Mais tarde, esse senso moral fará com que os homens cruéis se tornem seres bons e humanos. O senso moral, portando, existe no selvagem, mas nele está como o princípio do perfume no gérmen da flor que ainda não desabrochou. (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos)

Como se aplica na história: Como visualizar o estupro, e o que seria esse ato de crueldade, independente de qualquer lei de causa e efeito que possa ser mencionado futuramente. 

LEI DE IGUALDADE:
817. O homem e a mulher são iguais perante Deus e têm os mesmos direitos?
Deus não deu a ambos o conhecimento do bem e do mal e a faculdade de progredir?

818. De onde procede a inferioridade moral da mulher em certos países?
Do domínio injusto e cruel que o homem assumiu sobre ela. É resultado das instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza. Entre homens moralmente pouco adiantados, a força faz o direito.
(Allan Kardec, O Livro dos Espíritos)

Como se aplica na história: Vivemos hoje em uma Cultura do Estupro. O que é isso? É a idéia de que as mulheres podem ser objetificadas e tem que ser submissas ao homem, reivindicando de sua liberdade para atender os mais diversos desejos morais e sexuais. Quando a mulher não é submissa, ela "pode" ser estuprada, pois a sociedade fecha os olhos e culpabiliza a mulher pelo estupro, justificando o mesmo com a sua roupa, conduta social, ou, utilizando das palavras da médica "vidas passadas". É bom deixar claro que o estupro é uma violação ao livre-arbítrio da criatura, e que diz mais respeito a moral do estuprador do que da mulher estuprada. (Nesse caso, infelizmente, não era uma mulher, era uma criança de 7 anos...)

822. Sendo os homens e mulheres iguais perante a Lei de Deus, devem sê-lo igualmente perante as leis humanas?
O primeiro princípio de justiça é este: "Não façais aos outros o que não gostaríeis que vos fizessem.
(Allan Kardec, O Livro dos Espíritos)

Como se aplica na história: A idéia de que não se deve fazer ao outro o que não gostaria que fosse feito a você implica na médica verificar se a atitude de não-benevolência e não-caridade para com a menina é algo que ela gostaria que fosse repetida com ela ou com a filha ou filho dela. Nada dito aqui vai de encontro com a justiça divina, cujo propósito é simples e puramente a consolação da dor dos aflitos. 


LEI DE LIBERDADE:
826. Em que condições o homem poderia gozar de absoluta liberdade? 
Nas do eremita do deserto. "Desde que dois homens estejam juntos, há entre eles direitos a serem respeitados, e portanto, nenhum deles gozará de liberdade absoluta."

827. A obrigação de respeitar os direitos alheios tira ao homem o direito de ser senhor de si mesmo?
De modo algum, pois é um direito que lhe vem da natureza. 
(Allan Kardec, O Livro dos Espíritos)

Como se aplica na história: Entendendo que, homens e mulheres são iguais perante Deus, e que ambos tem liberdade para serem senhores e senhoras de si, um homem que se apodera do direito de dizer "não" de uma mulher, ou do direito de dizer "não" de uma criança, ou da falta de reconhecimento de que uma criança não tem condições físicas e psicológicas para arcar com um ato sexual, está usurpando o direito de liberdade das mesmas. Indo assim, de encontro com as leis de liberdade contidas no Livro dos Espíritos. Onde está a responsabilidade da garotinha? Em lugar nenhum. Ela foi vítima de uma situação de violência, e deveria ser acolhida e ter suas dores físicas e psicológicas respeitadas, para que não se usurpe dela também, a vontade de viver. 

LEI DE AMOR, JUSTIÇA E CARIDADE:

886. Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, tal como Jesus a entendia?
Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas. 
OBS: O amor e a caridade são o complemento da lei de justiça, pois amar o próximo é fazer-lhe todo o bem que nos seja possível e que desejaríamos que nos fosse feito. Tal o sentido destas palavras de Jesus: Amai-vos uns aos outros como irmãos.
(Allan Kardec, O Livro dos Espíritos)

Como se aplica na história: A médica recusou atendimento para uma criança de 7 anos devido a sua suposta mediunidade, que indicaram atitudes realizadas pela criança em uma vida passada. Ela julgou a mesma pelos atos que ela supostamente cometera, e ao invés de perdoar, ela faltou com a caridade e negou um serviço médico. Ela não foi indulgente com as supostas imperfeições, visto que a mediunidade é uma ferramenta que necessita de estudo e investigações e não pode ser levada a ponta de faca, e nem ser utilizada para julgar ninguém, nem espíritos desencarnados, e nem encarnados (basta checar o livro dos médiuns e as obras imensas que falam sobre mediunidade). 

***

Uma real atitude espírita é oferecer a mão para ajudar não importa a quem, respeitando os direitos do próximo e os nossos. Eu espero que esse texto esclareça bastante, tanto a respeito da conduta espírita Kardecista, quanto a conduta não-espírita dessa médica para com uma criança e sua mãe. 

Apesar de estarmos nos posicionando nesse momento, defendendo a doutrina kardecista, não estamos em posição de cobrar absolutamente nada da conduta moral de ninguém. O objetivo desse texto é elucidar às pessoas os verdadeiros posicionamentos espíritas e evitar que o nome de Allan Kardec e da Doutrina Espírita Kardecista sejam indevidamente utilizados. 

Estamos também nos posicionando quanto essa cultura de estupro que assola o Brasil, e oferecendo apoio e esclarecimento a vítimas de quaisquer tipo de violência. Acreditamos na justiça divina e acreditamos que todos nós temos a força necessária dentro de nós mesmos para passar pelas mais diversas dificuldades, basta termos fé e acreditarmos em nós mesmos. Vamos transformar o mundo e distribuir mais perdão, caridade e amor. 

Vanessa Quadros, SEEB