quinta-feira, 14 de junho de 2012

DOUTRINA ESPÍRITA E RACISMO


Por Sergio Aleixo
Escritor e palestrante espírita. Vice-presidente da Associação de Divulgadores do Espiritismo do Rio de Janeiro.


Uma causa com certos tipos de amigos não precisaria de inimigos. Reduzir o nível de oportunidade do Espiritismo ao seu aspecto moral é mal conhecê-lo. A isso já bem respondera Kardec em seu artigo O Que Ensina o Espiritismo, no qual prova que, fora do ensinamento puramente moral, os resultados do Espiritismo não são tão estéreis quanto pretendem alguns.[1] O mestre lhes é, por isso, um incômodo permanente, razão pela qual sempre buscam levantar-lhe fraquezas, a fim de tentarem minar o poder que sua obra, e só ela, tem de conferir ao Espiritismo unidade consistente, afastando-o das propostas em que vale quase tudo se em nome do “amor”. O pretenso erro mais levianamente explorado é o suposto racismo de Kardec. Mas como poderia ser propriamente um racista alguém que escreveu, por exemplo, isto:

[...] o Espiritismo, restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, faz que desapareçam, naturalmente, todas as distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor.[2]
[...] do estudo dos seres espirituais ressalta a prova de que esses seres são de natureza e de origem idênticas, que seu destino é o mesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem para o mesmo objetivo; que a vida corporal não passa de um incidente, uma das fases da vida do espírito, necessária ao seu adiantamento intelectual e moral; que em vista desse avanço o espírito pode sucessivamente revestir envoltórios diversos, nascer em posições diferentes, chega-se à consequência capital da igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças. Eis o que ensina o Espiritismo.[3]


Porém, deve-se considerar que, no século 19, o conceito de raça tinha statusde ciência, sendo a chamada branca, ou caucásia, tida e havida por superior. Naturalistas e até abolicionistas pensavam assim. O mais polêmico de todos os escritos pinçados por detratores de Kardec sequer foi por ele publicado, em que dizia a certa altura:

O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino.[4]

No entanto, omite-se o parágrafo seguinte, em que a pretensa condição superior daquela geração foi duramente relativizada pelo mestre espírita, dando prova de que se tratava, nele, não de preconceito ou discriminação, mas de uma inferência impregnada da opinião científica daquele momento, tipicamente eurocêntrico:

Daí o podermos, sem fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes. Mas, também pode ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os hotentotes com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos fósseis, elas não os tomarão pelos de alguma espécie de animais.[5]

Argumenta um irmão em Espiritismo que o erro foi Kardec ter usado um exemplo contemporâneo. Se escrevesse “homens de Neanderthal” em vez de “negros e hotentotes”, nada se diria. Concordo. Ou será que o trabalho dos espíritos não aprimora os instrumentos de que se servem ao longo de milênios? Isso, claro, não tem valor pontual. Uma pessoa “feia” não é dona, a priori, de um espírito involuído, nem uma pessoa “bonita” é a encarnação de um espírito necessariamente avançado. Kardec defendia, antes de tudo, que a evolução dos espíritos opera a evolução dos corpos; ou serão mesmo casuais as mutações adaptativas? Parte alguma têm os espíritos nisso?


10. [...] o corpo é simultaneamente o envoltório e o instrumento do espírito e, à medida que este adquire novas aptidões, reveste um envoltório adequado ao novo gênero de trabalho que deve realizar, assim como se dá a um operário ferramentas menos grosseiras, à medida que ele é capaz de fazer uma obra mais delicada.
11. Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio espírito que modela o seu envoltório, adequando-o às suas novas necessidades. Ele o aperfeiçoa, desenvolve e completa o seu organismo à medida que experimenta a necessidade de manifestar novas faculdades; em uma palavra, ele o talha de acordo com a sua inteligência. Deus lhe fornece os materiais, cabendo a ele empregá-los. É assim que as raças mais adiantadas têm um organismo, ou, se preferirem, uma ferramenta mais aperfeiçoada do que as raças mais primitivas. Assim também se explica o cunho especial que o caráter do espírito imprime aos traços fisionômicos e às linhas do corpo [...]
15. [...] Corpos de macacos podem muito bem ter servido de vestimenta aos primeiros espíritos humanos, necessariamente pouco adiantados, que tenham vindo encarnar na Terra, essas vestimentas foram as mais apropriadas às suas necessidades e mais adequadas ao exercício das suas faculdades que o corpo de qualquer outro animal. Ao invés de ser feita uma vestimenta especial para o espírito, ele teria achado uma pronta. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser espírito humano, assim como o homem, não raro, se veste com a pele de certos animais sem por isso deixar de ser homem.
16. [...] pode-se dizer que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se nos detalhes, conservando sempre a forma geral do conjunto. Os corpos aperfeiçoados, ao se procriarem, reproduziram-se nas mesmas condições [...][6]


Outra objurgatória é a que costuma atingir o presidente espiritual da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas: São Luís. Antes de tudo, saiba-se que, na S.P.E.E., era frequente os guias se comunicarem por médiuns distintos e em épocas diferentes. A resposta de São Luís pode ter sido vazada na forma infracitada por imperfeição do trabalho de um só desses médiuns. Seria precipitado malsinar o espírito com base nessa única situação, sem evidência de isso corresponder, nele, a um padrão inferior qualquer.
Na evocação do “negro Pai César”,[7] além do mais, o médium atua como intermediário de dois espíritos: São Luís, que auxilia nas respostas, e Pai César, submetido a essa ajuda. Existe a possibilidade de o médium não ter filtrado bem os recados, ou os ter entrecruzado. A opinião, ao demais, de que a brancura conferia superioridade é, ali, não de São Luís, mas do Pai César, e ainda assim, não por conta da cor branca em si, mas das relações de poder naquela sociedade.
O espírito chega a dizer que estava mais feliz que na Terra porque seu espírito não era mais negro; isto é, por não estar mais sujeito às humilhações aqui sofridas, não sendo o espírito rico ou pobre, homem ou mulher, velho ou criança, negro ou branco. Todavia, numa inesperada inferência, dada sua condição, afirmou o Pai César que os brancos eram orgulhosos de uma “alvura” de que não eram a causa. Parece mais São Luís, aí, do que Pai César.
De qualquer forma, causa estranhamento a resposta ao n. 9: “[A São Luís]. – A raça negra é de fato uma raça inferior? Resp. – A raça negra desaparecerá da Terra. Foi feita para uma latitude diversa da vossa”.[8] Agora já pareceu mais Pai César algo frustrado com sua encarnação anterior do que São Luís, o qual responde assim à última pergunta de Kardec:


12. [A São Luís]. – Algumas vezes os brancos reencarnam em corpos negros? Resp. – Sim. Quando, por exemplo, um senhor maltratou um escravo, pode acontecer que peça, como expiação, para viver num corpo de negro, a fim de sofrer, por sua vez, o que fez padecer os outros, progredindo por esse meio e obtendo o perdão de Deus.[9]


Não há muito, apareceu “Nota Explicativa” da Federação Espírita Brasileira repelindo qualquer possibilidade de inferência discriminatória ou preconceituosa na doutrina espírita bem entendida; motivada foi, contudo, por atuação do Ministério Público Federal. A F.E.B., data venia, sempre foi mais dedicada a consignar notas que contestem Kardec, como a que corresponde à Gênese, XV, 66, na qual defende o rustenismo no momento mesmo em que Kardec o sepultava. Eis, pois, a nota da F.E.B. ao título da “Nota Explicativa”, esclarecendo a situação da feitura da peça:


Nota da Editora: Esta “Nota Explicativa”, publicada em face de acordo com o Ministério Público Federal, tem por objetivo demonstrar a ausência de qualquer discriminação ou preconceito em alguns trechos das obras de Allan Kardec, caracterizadas, todas, pela sustentação dos princípios de fraternidade e solidariedade cristãs, contidos na Doutrina Espírita.[10]


Dada a relevância do assunto, todavia, é de se lamentar que as referências das citações da Revista Espírita nessa Nota Explicativa febiana hajam sido registradas algo descuidadamente. Das cinco citações diretas da Revista, nenhuma é vinculada ao tópico a que corresponde e só duas indicam o mês, o que dificulta sobremodo encontrá-las, e às demais, nos volumes de outras editoras. Por sinal, um dos textos foi reproduzido sem menção ao número de sua página nas edições da própria F.E.B. e, ainda, reportando-se ao mês errado. Onde se lê: “janeiro de 1863”, leia-se: “p. 87, fevereiro de 1863”:


Nós trabalhamos para dar a fé aos que em nada crêem; para espalhar uma crença que os torna melhores uns para os outros, que lhes ensina a perdoar aos inimigos, a se olharem como irmãos, sem distinção de raça, casta, seita, cor, opinião política ou religiosa; numa palavra, uma crença que faz nascer o verdadeiro sentimento de caridade, de fraternidade e deveres sociais.[11]


Outro escrito significativo de Kardec a respeito é o que passo a transcrever na sua íntegra, sem negligenciar o parágrafo final, inexistente nas edições febianas e congêneres e, por conseguinte, na sua citação constante da Nota Explicativa da F.E.B.:


Com a reencarnação desaparecem os preconceitos de raças e de classes, pois que o mesmo espírito pode renascer rico ou pobre, grande senhor ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que supere em lógica o fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação fundamenta sobre uma lei da natureza, o princípio da fraternidade universal, ela fundamenta sobre a mesma lei o princípio da igualdade dos direitos sociais e, por consequência, o da liberdade.
Os homens só nascem inferiores e subordinados pelo corpo; pelo espírito eles são iguais e livres. Daí o dever de tratar os inferiores com bondade, benevolência e humanidade, porque aquele que hoje é nosso subordinado pode ter sido nosso igual ou nosso superior, pode ser um parente ou um amigo, e nós, por nossa vez, podemos vir a ser o subordinado daquele que hoje comandamos.[12]


Portanto, a acusação de racismo a Kardec e ao Espiritismo nunca poderá superar o vício do anacronismo. Sob esse ponto de vista, Kardec não seria mais racista do que qualquer europeu de seu tempo, porém, com esta vantagem soberba: se os erros da ciência de época o autorizaram a crer em raças primitivas e que podemos nascer inferiores e subordinados pelo corpo, a isso nunca deixou de contrapor a medida libertária do pensamento espírita, isto é, pelo espírito somos iguais e livres, não somos homens ou mulheres, crianças ou velhos, ricos ou pobres, brancos ou negros, o que o acabou levando à defesa contundente, como se viu, da igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e da abolição dos privilégios de raças.
Com os avanços da biogenética, demonstrado está não existirem genes raciais na espécie humana. Somos, claro, mais evoluídos biologicamente que nossos ancestrais antropoides. Esta, a única evolução, aliás, admitida pela ciência. Caso se fale numa evolução espiritual, moral, ou mesmo cultural, é-se ignorado ou repreendido, porque o espírito, ou a reencarnação, ainda são irrelevantes para a ciência, assim como Deus. Entretanto, espíritas por definição, não podemos falar e pensar como agnósticos, ateus, materialistas, niilistas. Se, por um lado, o Espiritismo nos impõe acompanhar a ciência naquilo que particularmente a esta diz respeito, é-nos interdito negligenciar o próprio Espiritismo no que a este compete exclusivamente.

Por isso, dizemos hoje, os espíritas, que não há raças humanas, menos ainda inferiores ou superiores, de comum acordo nisto com a ciência, mas igualmente afiançamos que, sim, os espíritos, mediante a reencarnação, constituem os artífices da evolução biológica. As mutações que findam por selecionar os mais aptos não são casualmente adaptativas. Como dizia o mestre espírita por excelência: “Um acaso inteligente já não seria acaso”.[13]





[1] Revista Espírita. Ago/1865.
[2] Revista Espírita. Out/1861. Discurso do Sr. Allan Kardec. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 432.
[3] Revista Espírita. Jun/1867. Emancipação das Mulheres nos Estados Unidos. F.E.B., 2007, 2.ª ed, p. 231.
[4] Obras Póstumas. Teoria da Beleza. F.E.B., 2002, 32.ª ed., p. 168.
[5] Id., ibid. Grifo meu.
[6] KARDEC. A Gênese, XI. Léon Denis Gráfica e Editora, 2008, 2.ª ed., pp. 235/36 e 237.
[7] No francês: “le nègre Pa César”.
[8] Revista Espírita. Jun/1859. O negro Pai César. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 245.
[9] Id., ibid.
[10] Revista Espírita. ANO I. 1858. F.E.B., 2009, 4.ª ed., p. 537.
[11] KARDEC. Revista Espírita. Fev/1863. A Loucura Espírita. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 87.
[12] KARDEC. A Gênese, I, 36. Léon Denis Gráfica e Editora, 2.ª ed., 2008. Com base na 4.ª ed. francesa.
[13] O Livros dos Espíritos. Comentário ao n. 8.

terça-feira, 12 de junho de 2012

DESENCARNAÇÃO E DESPRENDIMENTO

Por Sergio Aleixo
Escritor e palestrante espírita. Vice-presidente da Associação de Divulgadores do Espiritismo do Rio de Janeiro.

Morte é para o corpo; desencarnação, para o espírito. Essas palavras, contudo, equivalem-se. Por isso se diz que fulano desencarnou, em vez de se dizer que morreu. Espíritas, somos cientes de que a separação entre alma e corpo raramente é instantânea, donde passarmos, às vezes, dessa equivalência a uma diferença nada técnica entre morte e desencarnação. Explico-me. Confrontando os originais, vê-se que Kardec utilizou o substantivo désincarnation apenas duas vezes, por mais que os tradutores o tenham feito aparecer, e a formas do verbo désincarner, onde nunca estiveram. Demonstro-o.
Em O Livro dos Espíritos, por exemplo, nenhuma vez ocorre o substantivo desencarnação (désincarnation), o verbo desencarnar (désincarner), em qualquer de suas formas, nem mesmo o particípio passado/adjetivo desencarnado (désincarné). Kardec, ali, se refere ao encarnado (incarné), reencarnado (reincarné) e não encarnado ou errante (non incarné ou errant), isto é, liberto, desprendido ou desembaraçado do corpo (dégagé du corps). Os tradutores febianos é que sempre ousam mais...
Se não, vejamos. 
O Livro dos Espíritos: (1) nota ao n. 188: “Une personne décédée”; i. é: “Uma pessoa falecida”. Guillon Ribeiro: “um Espírito que desencarnara”; Evandro Noleto Bezerra: “um Espírito que havia desencarnado”. Herculano Pires: “Uma pessoa falecida”. 
(2) n. 257: “pendant les premiers instants, l'Esprit”; i. é: “durante os primeiros instantes, o Espírito”. G. R.: “durante os primeiros minutos depois da desencarnação, o Espírito”. E. N. B.: “Durante os primeiros instantes, o Espírito”. H. P.: “Nos primeiros instantes, o Espírito”. 
(3) n. 339: “sortie du corps”; i. é: “saída do corpo”. G. R. e E. N. B.: “ao desencarnar”; H. P.: “desencarnação”. 
(4) n. 399: “l'état d'Esprit” e “l'état d'incarnation”; i. é: “o estado de Espírito” e “o estado de encarnação”. G. R. e E. N. B.: “quando desencarnado” e “quando encarnado”. H. P.: “no estado de Espírito” e “no estado de encarnado”. 
(5) n. 402: “à leur mort”; i. é: “na sua morte”. G. R.: “desencarnando”; E. N. B.: “aodesencarnarem”. H. P.: “ao morrerem”. 
(6) n. 1014-a: “Esprits errants, ou nouvellement dégagés”; i. é: “Espíritos errantes, ou recentemente libertos”. G. R. e E. N. B.: “recém-desencarnados”; H. P.: “recentemente libertados”. 
(7) O Céu e o Inferno, parte II, cap. II: Sr. Sanson, numa nota Kardec escreve: “mais en raison de la mort récente de M. Sanson”, i. é: “mas em razão da morte recente do Sr. Sanson”. Manuel J. Quintão: “visto que o Sr. Sanson desencarnara recentemente”; H. P.: “mas em virtude da morte recente do Sr. Sanson”. 
(8) O Céu e o Inferno, parte II, cap. II: O Doutor Demeure, a certa altura escreve Kardec: “lendemain de sa mort”; i. é: “no dia seguinte ao de sua morte”. M. J. Q.: “da sua desencarnação”; H. P.: “da sua morte”, etc., etc. 
Essas ousadias ao menos indicam a equivalência entre morte e desencarnação.
Kardec chegou a usar, sim, o particípio/adjetivo desencarnado, o substantivo désincarnation, mas nunca o verbo desencarnar, o que coube, em volumes da Revista Espírita, aos espíritos Viennois (désincarnent), Lamennais (désincarne) e Clélie Duplantier (désincarnant).[1] 

Eis, portanto, os dois empregos substantivos do mestre:

Cada globo tem, de alguma sorte, sua população própria de espíritos encarnados e desencarnados, alimentada em sua maioria pela encarnação e desencarnação dos mesmos [Espíritos]. Esta população é mais estável nos mundos inferiores, pelo apego deles à matéria, e mais flutuante nos superiores.[2]

Tal é a alma durante a vida e depois da morte. Para ela há, portanto, dois estados: o de encarnação ou de constrangimento, e o de desencarnação ou de liberdade; em outras palavras: o da vida corporal e o da vida espiritual.[3]

No primeiro contexto, desencarnação opõe-se a encarnação, justamente como morte a nascimento; no segundo, é o estado de liberdade, de vida espiritual. Ora, désincarnation surgiu primeiramente numa correspondência publicada na Revista Espírita de setembro de 1863. No texto do missivista, lê-se: “désincarnation ou mort corporelle”, sinonímia que não mereceu de Kardec nenhum reparo.[4] As duas ocorrências substantivas restantes pertencem aos espíritos Demeure e Clélie Duplantier; em ambas, permanece o paralelismo com a palavra morte.

[...] quanto mais cedo se der a sua desencarnação, mais cedo poderá se dar também a reencarnação que lhe permitirá acabar a sua obra [...][5]
Em geral, sendo a população mauriciana inferior, do ponto de vista moral, a desencarnação não pode fazer do espaço senão um viveiro de espíritos muito pouco desmaterializados, ainda marcados por todos os seus hábitos terrenos, e que continuam, não obstante espíritos, a viver como se fossem homens.[6]
Quando, por outra, os espíritos e Kardec trataram da intimidade do processo quase sempre gradual da separação entre alma e corpo, ou seja, no suceder mesmo da morte e do pós-morte, não o fizeram sob os signos da palavra désincarnation, e sim do vocábulo dégagement: “desprendimento”.[7] E não sem motivos.
O princípio espírita é que “a vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo sem vida orgânica”.[8] Ora, após a morte, por mais demorado que o seja, o desprendimento “não implica”, segundo o mestre, “a existência no corpo de nenhuma vitalidade, nem a possibilidade de retorno à vida, mas a simples persistência de uma afinidade entre o corpo e o espírito, afinidade que está sempre na razão da preponderância que, durante a vida, o espírito deu à matéria.”[9]
O estado de encarnação, assim, pressupõe vitalidade corporal; a ausência desta caracteriza, por sua vez, o de desencarnação. O cadáver não pode estar mais ou menos morto; na mesma proporção, a alma não estará mais ou menosdesencarnada (désincarné), e sim mais ou menos livre, desprendida,desembaraçada (dégagé), situação bem distinta.

Ao ocorrer a cessação da atividade do princípio vital, o corpo não mais retéma alma, embora esta, não raro, é que insista em identificar-se à matéria inerte. Com a morte, não há mais, no corpo, nenhuma vitalidade, todavia pode existir, entre alma e corpo, alguma ou muita afinidade, o que gera pontos de contato entre o cadáver e o perispírito. Entretidas que eram essas ligações fluídicas apenas pela atividade do princípio vital, passam a ser mantidas por uma força de aderência que, agora só devida ao espírito, o retém identificado ao corpo, e não mais encarnado nele.[10]
Esses laços fluídicos podem gerar uma espécie de repercussão moral que transmite ao espírito a sensação do que se passa no corpo, muito embora, incontinenti, Kardec esclareça que “repercussão” não é o melhor termo, por dar a ideia de um efeito muito material àquilo que, antes, está mais para uma ilusão que o espírito toma como realidade. Ora, neste, as sensações não dependem mais deórgãos sensitivos; são gerais e não mais se devem a agentes exteriores.[11]

A desencarnação só se opera com a morte; o desprendimento, já durante a vida. A primeira depende da morte do corpo; o segundo, da elevação da alma. Durante a encarnação, é a vitalidade do corpo que prende a alma; depois da morte, é aafinidade da alma com a matéria que a identifica com o cadáver. Desse modo, morteequivale, sim, a desencarnação e antes difere, mais propriamente, dedesprendimento. Morto o corpo, o espírito está desencarnado, sem estar, porém, necessariamente desprendido.



[1] F.E.B., mai/1863, p. 222; out/1863, p. 429; abr/1869, p. 121.
[2] O Céu e o Inferno. Parte I, cap. III, n. 17. F.E.B., 2003, 51.ª ed., p. 37. Grifo meu, assim como o acréscimo da palavra “espíritos” entre colchetes. No original francês: “mêmes Esprits”.
[3] Revista Espírita. Jan/1866. A Jovem Cataléptica da Suábia. Estudo Psicológico. F.E.B., 2007, 2.ª ed., p. 41. Grifos meus.
[4] Questões e Problemas. Sobre a Expiação e a Prova. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 366.
[5] O Céu e o Inferno. Parte II, cap. II. O Doutor Demeure. Trad.: J. Herculano Pires.
[6] Revista Espírita. Mar/1869. As Árvores Mal-Assombradas da Ilha Maurício. F.E.B., 2007, 2.ª ed., p. 122.
[7] O Livro dos Espíritos, 154 a 162. O Céu e o Inferno, Parte II, cap. I: Le Passage.
[8] O Livro dos Espíritos. 136-a. Grifos meus. Trad.: J. Herculano Pires.
[9] O Livro dos Espíritos. 155-a. Grifos meus. Trad. J. Herculano Pires.
[10] O Céu e o Inferno. Parte I, cap. I, ns. 4, 5, 10 e 11. No francês: “points de contact”; “force d'adhérence”; “liens fluidiques”.
[11] O Livro dos Espíritos, 257. No original: “[...] Dans le corps, ces sensations sont localisées par les organes qui leur servent de canaux. Le corps détruit, les sensations sont générales. […] la douleur n'est pas localisée et qu'elle n'est pas produite par les agents extérieurs: c'est plutôt un souvenir qu'une réalité […] il en résultait une sorte de répercussion morale qui lui transmettait la sensation de ce qui se passait dans le corps. Répercussion n'est peut-être pas le mot, il pourrait faire croire à un effet trop matériel […] Le périsprit, dégagé du corps, éprouve la sensation; mais comme elle ne lui arrive plus par un canal limité, elle est générale. […] savons qu'il y a perception, sensation, audition, vision ; que ces facultés sont des attributs de tout l'être, et non, comme chez l'homme, d'une partie de l'être […] Il n'en est pas de même de ceux dont le périsprit est plus dense; ceux-là perçoivent nos sons et nos odeurs, mais non pas par une partie limitée de leur individu, comme de leur vivant [...] inférieurs comme supérieurs, n'entendent et ne sentent que ce qu'ils veulent entendre ou sentir. Sans avoir des organes sensitifs, ils peuvent rendre à volonté leurs perceptions actives ou nulles [...]”.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Preto velho por quê?

Em 
SABEDORIA DE PRETO VELHO
De PAI JOÃO DE ARUANDA
Por ROBSON PINHEIRO

Alguém perguntou por que o Espírito João Cobú se manifestava assim, como um preto velho, sentado no chão, com as pernas de lado, a voz potente e forte, tão diferente do médium de que se utilizava. Argumentava que não era necessário a nenhum Espírito apresentar-se daquele modo; não havia motivos para esta caricatura tão rudimentar, arcaica talvez, própria de religiões apegadas a rituais e maneirismos pueris, segundo defendia.

Pai João ouvia atento.

Por que motivo escolher a aparência de um ancião se ele era Espírito, e Espírito não é idoso nem jovem é apenas Espírito. Após alguns instantes em silêncio, Pai João disse:

— Meu filho, pelo que eu saiba o espírito já esclarecido pode se apresentar da forma que desejar para estar com os filhos da Terra. Cada um escolhe a vestimenta que mais lhe agradar. Não há por aí Espíritos que se mostram como irmãs de caridade, padres, orientais, médicos e tantos outros? Por que o preconceito contra o velho ou a vovó? Será apenas porque a gente se apresenta como negro, ex-escravo? Isso por acaso desmerece a mensagem que trazemos? Por que não repelir Espíritos que se manifestem como freiras, indianos ou doutores? Por acaso meu filho pensa que do lado de cá da vida só há diploma de médicos e eclesiásticos?

Pai João prosseguia:

— O problema, meu filho, é que velho não dá ibope para os médiuns e donos de centro. Mas, se além da visão do ancião e do linguajar singelo, a gente se mostra negro, aí sim: o preconceito de meus filhos fala ainda mais alto... Não há alforria que resolva; o preconceito é cativeiro pior que a escravidão. Negro, velho e, ainda por cima, morto... Nego acha que isso incomoda por causa do orgulho e do desejo que vocês têm de enquadrar tudo dentro dos padrões brancos, vamos dizer. Se é assim, meu filho, aceita o conselho de nêgo: vá procurar Espíritos superiores, de médicos, padres e irmãs de caridade, e deixa nêgo trabalhar quietinho, falando com simplicidade para aqueles que não entendem linguagem complicada. Deixa nêgo trabalhar, cantou Pai João.

Na fazenda do nosso Pai, que é Deus, tem lugar para todos. Cada um faça como pode e sente que é correto, pois nem Jesus, nem Kardec deixaram escrito algum dizendo que Espírito deve manifestar-se deste ou daquele jeito. João Cobú faz como sabe, trabalhando com alma e coração Quem souber fazer melhor, faça; ele respeita. Enquanto isso, os pais velhos continuam pedindo ao Senhor que os deixe trabalhar, apenas trabalhar.

Muitos dizem que preto-velho é Espírito atrasado, que não tem conhecimento e que, somente pelo fato de assim se apresentar assim já atesta a própria inferioridade. Mas eu gostaria de convidar a uma reflexão. O que é estar atrasado ou adiantado em sua evolução? Se um Espírito é atrasado, ele o é em relação a quem? Se está adiantado, como saber com certeza?

Muitos julgam as aparências, inclusive a dos Espíritos. Devemos ter cuidado ao fazer isso. É certo que não se deve crer em tudo ou em todos os Espíritos, mas, daí a discriminar um Espírito por ele se manifestar desta ou daquela forma preferida por ele, é preconceito típico de muitos irmãos.

A atmosfera espiritual do Brasil, devido a seu passado histórico, é povoada de Espíritos que preferem manter a forma espiritual tal qual em sua última existência, como escravo, o regime escravocrata terminou; a escravidão, contudo, permanece marcada nos céus no Brasil. O estigma deixado por ela, ainda o experimentamos. É por isso que mesmo Espíritos que não reencarnaram como negros, assumem essa aparência com alguma finalidade.

Por que não questionar também aqueles que se manifestam como frades, madres ou quaisquer formas espirituais que adotem determinados espíritos?